O Direito de se Contratar, por Luiz Octavio Vieira

Uma das ideias mais profícuas para se demonstrar e afirmar a necessidade de se contratar, independentemente das normas jurídicas, é aquela que veio ao depois ser conhecida como a autonomia privada. Windscheid afirmou a este respeito: “a pessoa comanda, e o Direito faz sua esta ordem”.

Em outras palavras, a declaração de vontade tem claramente o objetivo de criar efeito jurídico; ela não é uma inconsequente declaração, mas, ao invés, torna-se a franqueadora para o mundo jurídico que então se abre. Basta dizer que essa construção doutrinária foi exatamente contemporânea à criação do conceito de suporte fáctico, o fattispecie ou Tatbestand, tão importante na teoria dos atos jurídicos. E muito utilizada por nós, advogados, quando na análise de casos que nos apresentam.

É a própria natureza que nos levaria ainda a procurar relações com nossos semelhantes, mesmo quando não se tem necessidade de nada.

A eficácia da declaração decorre da vontade de pessoas moralmente auto-responsáveis e que vem moldar a autonomia privada.

Mas é fácil reconhecer que os efeitos jurídicos não podem decorrer simplesmente da vontade interna, mas requer obrigatoriamente a vontade exteriorizada. Assim, é aceito como verdadeiro apenas o que foi claramente exteriorizado.

Claramente, a lei não teria surgido se o homem pudesse ter-se mantido dentro dos limites espontaneamente traçados pela reta razão.

A autonomia privada fundamenta-se na chamada teoria da confiança, que valoriza a compreensão e confiança(Treu und Glauben) entre os homens. Se a vontade aparente não for circunstanciada por evidências que indiquem má-fé, então ela deve ser aceita como verdade. Se admitirmos como lícito não cumprir o pactuado a sociedade não será viável.

Emílio Betti, professor em Roma, ilustrou a noção de autonomia privada com exemplo do tempo do ciclo das navegações, na narração de um veneziano do século XV: a do escambo, nas praias, sem que houvesse contato direto algum entre as partes envolvidas, e que só se dava como terminado, quando se consideravam justas as quantidades relativas dos bens trocados.

Assim é narrada a experiência de Alvise Cá da Mosto: “aquellos de quien es la sal hacen con ella montículos en fila, señalando cada uno el suyo, y luego vuelve atrás toda la caravana una media jornada; llega entonces otra tribu de negros que no quieren dejarse ver ni hablar, y, vista la sal, ponen una cantidad de oro junto a cada montón y se vuelven, dejando el oro y la sal; una vez que han partido, regresan los negros de la sal; vienen a comprobar si la cantidad de oro que se ha dejado es, a su juicio, suficiente para comprar la cantidad de sal correspondiente. Y si encuentram bastante, la tomam, dejando la sal; si nos es así, dejan oro y sal y se retiran de nuevo, en espera de que los otros vuelvan y agreguen la cantidad de oro que aún falta. Después de ello, alcanzado el acuerdo, toman su camino, levando unos el oro e otros la sal.”

Betti concluiu pela óbvia inexistência de qualquer ordem jurídica e que a plena vinculação das partes se dava somente pela vontade explicitada dos participantes.

Este episódio é exatamente igual a um outro muito mais antigo, narrado pelo grego Heródoto, o “pai da história”, é sobremaneira revelador da importância e prevalência da autonomia privada.

“Dizem os Cartagineses existir, além das colunas de Hércules, um país habitado, onde costumam ir comerciar. Quando ali chegam, retiram as mercadorias dos navios e colocam-nas ao longo da praia, voltando em seguida para bordo, onde, para atrair a atenção dos habitantes, fazem fumaça em grande quantidade. Os naturais do país, percebendo a fumaça, dirigem-se para a praia e ali depositam uma grande quantidade de ouro que consideram correspondente ao valor das mercadorias, afastando-se. Os Cartagineses desembarcam novamente, examinam a quantidade do precioso metal ali deixada e, se a julgam razoável, apanham-na e retiram-se. Se, porém a julgam insuficiente, retornam aos navios, onde permanecem, tranqüilos, na expectativa, Os nativos voltam ao local e acrescentam mais alguma coisa, esperando que com isso os Cartagineses se dêem por satisfeitos. As duas partes jamais procuram ludibriar uma à outra. Os Cartagineses não tocam no ouro senão quando ele corresponde ao valor das mercadorias; e os nativos só se apoderam das mercadorias quando os Cartagineses se apoderam de ouro”(1957, p. 372).

Creio que ficou clara a importância e a prevalência da autonomia privada em nossos dias, e desde sempre.​

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